terça-feira, 10 de março de 2009

Terror de te Amar

Terror de te amar num sítio tao frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeiçao
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.



Sophia de Mello Breyner Andresen



...sentou-se para descansar
e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul
porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul,
faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações,
faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos,
faz de conta que uma veia não se abrira
e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo
escorrendo sangue escarlate,
e que ela não estivesse pálida de morte
mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade,
precisava no meio do faz de conta
falar a verdade de pedra opaca
para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante,
faz de conta que amava e era amada,
faz de conta que não precisava de morrer de saudade,
faz de conta que estava deitada
na palma transparente da mão de Deus,...,
faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo
pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte,
faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade
quando os fios de ouro que fiava
se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio,
faz de conta que era sábia bastante
para desfazer os nós de corda de marinheiro
que lhe atavam os pulsos,
faz de conta que tinha um cesto de pérolas
só para olhar a cor da lua pois ela era lunar,
faz de conta que ela fechasse os olhos
e os seres amados surgissem quando abrisse os olhos húmidos de gratidão,
faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta,
faz de conta que se descontraía o peito
e a luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta
de açudes mudos e de tranquilas mortalidades,
faz de conta que ela não era lunar,
faz de conta que ela não estava chorando por dentro...

Clarice Lispector

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