Para uns a literatura já não é arte – é religião. A literatura é o território sagrado onde se inventa um chão e nos sentámos com os deuses. O lugar onde, também nós, somos deuses. No momento dessa relação, estamos fundando um tempo fora do tempo. E nos religamos com o universo. É isso que torna num momento divino esse pequeno delírio que é o acto de inventar.
Este jovem, este Ondjaki, experimentou muito cedo essa embriaguez. Bebeu dessa poção e agora se tornou em estório-dependente. Se tivesse que ser punido teria que responder não apenas pelo consumo mas pela produção e distribuição dessa droga.
Esta dependência da fabulação mergulha sempre na infância. Esse desejo de escrever não na página mas na própria voz – isso é vício que se retorceu em pequeno. E se reforçou num mundo cheio de oralidade. Felizmente, Ondjaki não se lavou dessa doença. Porque o que ele faz não é o simples deitar de uma história na página do livro. Mais do que isso: ele cria uma história para a nossa própria vida. Essa nossa vida que é a única e milacurosa fonte de acontecência. Se existe viagem é esta: percorrer as diferentes fabulações de nós mesmos, contar essas maravilhações aos outros. E confessar, sem vergonha pública: olhe, eu estou sendo este. Mas já fui uns que morreram. Quem sabe serei quem, depois deste mim?
Este é o motivo de quem escreve como e com Ondjaki – desengaiolar sentimentos. E descobrir que todos voam, não havendo pequenos nem grandes. Essa visitação aos muitos que somos, às múltiplas dimensões da nossa existência: é esta a razão de ler estes Momentos de Aqui.
Mia Couto
(no prefácio ao livro)Momentos de Aqui
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