segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Porque amanhã e depois há histórias...





A história de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar


Kengah estendeu as asas para levantar voo, mas a espessa onda foi mais rápida e cobriu-a inteiramente. Quando veio ao de cima, a luz do dia havia desaparecido e, depois de sacudir a cabeça energicamente, compreendeu que a maldição dos mares lhe obscurecia a visão.

Kengah, a gaivota de penas cor de prata, mergulhou várias vezes a cabeça, até que uns clarões chegaram às pupilas cobertas de petróleo. A mancha viscosa, a peste negra, colava-lhe as asas ao corpo, e por isso começou a mexer as patas na esperança de nadar rapidamente e sair do centro da maré negra.

Com todos os músculos contraídos pelo esforço, chegou por fim ao limite da mancha de petróleo e ao fresco contacto com a água limpa. Quando, de tanto pestanejar e mergulhar a cabeça, conseguiu limpar os olhos, olhou para o céu e não viu mais que algumas nuvens que se interpunham entre o mar e a imensidade da abóbada celeste.

A mancha negra. A peste negra. Enquanto esperava o fatal desenlace, Kengah amaldiçoou os humanos.
- Mas não todos. Nada de injustiças – grasnou ela debilmente.
Desesperada perante a ideia de uma morte lenta, sacudiu-se toda e verificou com espanto que o petróleo não lhe tinha colado as asas ao corpo.

- Talvez tenha ainda uma possibilidade de sair daqui, e quem sabe se, voando alto, muito alto, o sol não derreterá o petróleo – grasnou Kengah.
Kengah bateu as asas energicamente, encolheu as patas, ergueu-se uns dois palmos e caiu de borco na água.
À quinta tentativa, Kengah conseguiu levantar voo.
Batia as asas com desespero, pois o peso da camada de petróleo não lhe permitia planar. Bastaria uma só pausa para ir por ali abaixo. Por sorte, era uma gaivota jovem e os músculos respondiam em boa forma.

Ganhou altura. Sem deixar de mover as asas, olhou para baixo e viu a costa que se perfilava apenas como uma linha branca. Viu também alguns barcos movendo-se como diminutos objectos sobre um pano azul. Ganhou mais altura, mas os esperados efeitos do sol não a atingiam. Talvez os seus raios produzissem um calor muito fraco, ou então era a camada de petróleo que era excessivamente espessa.

Numa desesperada tentativa de recuperar altura, fechou os olhos e bateu as asas com as suas últimas energias. Não soube durante quanto tempo manteve os olhos fechados, mas quando os abriu ia a voar sobre uma alta torre que ostentava um cata-vento de ouro.
- São Miguel! – grasnou ela ao reconhecer a torre da igreja de Hamburgo.
As asas negaram-se a continuar o voo.

Um gato grande, preto e gordo estava a apanhar sol na varanda, ronronando e meditando acerca de como se estava bem ali, recebendo os cálidos raios pela barriga acima, com as quatro patas muito encolhidas e o rabo estendido.

No preciso momento em que rodava preguiçosamente o corpo para que o sol lhe aquecesse o lombo ouviu o zunido provocado por um objecto voador que não foi capaz de identificar e que se aproximava a grande velocidade. Atento, deu um salto, pôs-se de pé nas quatro patas e mal conseguiu atirar-se para o lado para se esquivar à gaivota que caiu na varanda.
Era uma ave muito suja. Tinha todo o corpo impregnado de uma substância escura e malcheirosa.

Zorbas aproximou-se e a gaivota tentou pôr-se em pé arrastando as asas.
- Não foi uma aterragem muito elegante – miou.
- Desculpa. Não pude evitar – reconheceu a gaivota.
- Olha lá, tens um aspecto desgraçado. Que é isso que tens no corpo? E que mal que cheiras! – miou Zorbas.
- Fui apanhada por uma maré negra. A peste negra. A maldição dos mares. Vou morrer – grasnou a gaivota num queixume.

- Morrer? Não digas isso. Estás cansada e suja. Só isso. Porque é que não voas até ao jardim zoológico? Não é longe daqui e lá há veterinários que te poderão ajudar – miou Zorbas.
- Não posso. Foi o meu voo final – grasnou a gaivota numa voz quase inaudível, e fechou os olhos.
- Não morras! Descansa um bocado e verás que recuperas. Tens fome? Trago-te um pouco da minha comida, mas não morras – pediu Zorbas, aproximando-se da desfalecida gaivota.

Vencendo a repugnância, o gato lambeu-lhe a cabeça.
- Olha, amiga, quero ajudar-te mas não sei como. Procura descansar enquanto eu vou pedir conselho sobre o que se deve fazer com uma gaivota doente – miou Zorbas preparando-se para trepar ao telhado.
Ia afastar-se na direcção do castanheiro quando ouviu a gaivota a chamá-lo.

- Vou pôr um ovo. Com as últimas forças que me restam vou pôr um ovo. Amigo gato, vê-se que és um animal bom e de nobres sentimentos. Por isso, vou pedir-te que me faças três promessas. Fazes? – grasnou ela, sacudindo desajeitadamente as patas numa tentativa falhada de se pôr em pé.
- Prometo-te o que quiseres. Mas agora descansa – miou ele compassivo.
- Não tenho tempo para descansar. Promete-me que não comes o ovo – grasnou ela abrindo os olhos.
- Prometo que não te como o ovo – repetiu Zorbas.
- Promete-me que cuidas dele até que nasça a gaivotinha.
- Prometo que cuido do ovo até nascer a gaivotinha.
- E promete-me que a ensinas a voar – grasnou ela fitando o gato nos olhos.

Então Zorbas achou que aquela infeliz gaivota não só estava a delirar como estava completamente louca.
- Prometo ensiná-la a voar. E agora descansa que vou em busca de auxílio – miou Zorbas trepando de um salto para o telhado.
Kengah olhou para o céu, agradecendo a todos os bons ventos que a haviam acompanhado e, justamente ao exalar o último suspiro, um ovito branco com pintinhas azuis rolou junto do seu corpo impregnado de petróleo.

Para saber o fim desta ternura, ler do escritor chileno Luís Sepúlveda “História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar”

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