domingo, 4 de novembro de 2007

e os meninos também

Nininha se arrepiava, sempre, quando o vento, de final da tarde, lhe trazia cheiros de mato molhado. Daquela terra vermelha despertada pelas gotas prenhas de chuva.
De olhos fechados, erguia o nariz sugando aquela magia telúrica, que a parecia sorver terra adentro, céu acima. Pássaro sonhador sem fronteiras físicas. Nininha ficava ali, enfeitiçada por xicuembo, enquanto o chuveiro lhe rodava o vestido num abraço ensopado. Menina endoidada, ao olhar comum. Dos que da chuva sensatamente fugiam. Da magia dos sentidos escapavam.

Nininha ficava ali, com a chuva a lavar-lhe a alma, como se ela própria fosse terra de semeio, carente de rega. Até se fundir, de pés descalços, na torrente avermelhada do terreiro. Nininha cerrava os olhos. Voando no sonho pintado em sua alma. Menina-mulher, nascida em contra-dança com o socialmente esperável, coração insuportável de caber num só corpo. Certo certo, ninguém lhe adivinhava a idade, porque a métrica cronológica lhe extravasava o existir.

Anjo que era oferecido à Terra. Sonho plantado em corpo humano. Mas muito mais ela era do que isso, mesmo que tudo isso já bastasse para exceder a humana compreensão. Jurava, o menos longínquo de seus próximos, que um dia lhe escutara fala sózinha, com uma luz. Dela emergente. Farolando-a, concorrente ao Sol, entre o verde do manganal. Nininha se sentava no terreiro, atraindo, um a um, bandos de meninos, pirilampos de cristal, a quem distribuía rebuçados de olhares. Arco-íris de sonhares.

Dizia-se, no povoado, que ela se travestia no contar das histórias.

Fundindo-se personagens-mil. Ora flamingo rosado, em voo rasante. Esticado. Ora papa-formigas guloso, rapador militante daqueles ninhos-cónicos. Hotéis de vida do terreiro erguidos. Tudo isso era Nininha. Todas essas existências emprestadas. Mas, ao mesmo tempo, em sapato algum da humana existência parecendo caber. Mulher-menina bem o sabia. Bem se sabia diferente, com brilhos-mil para nos resgatar de nós próprios. Dessa vertigem, cada vez maior, de tudo esmagar à nossa volta. Casulando-nos em autismos de sentires. Indiferentes a tudo o que extravase o próprio umbigo. Ou, quando muito, o do séquito familiar restrito.

Um dia, vi um velho sentar-se, de mansinho, entre o passarinhado de meninos, à beira de Nininha. O homem, estendeu-lhe a mão e um pedido de história de encantar. Que o tirasse da humana escuridão.

Ela desdobrou-se em arco-íris. Iluminando-lhe o existir. Subtraindo-o da solidão. Até que o velho largou uma lágrima. Uma única. No terreiro vermelho. Nininha se arrepiou com o cheiro da terra molhada? e os meninos também.


Senti no corpo todo um arrepio
senti nas veias um fogo esquecido

Depois fugi-te pelo corpo acima
medi-te na boca a intensidade
senti que um rio parara
e que o nevoeiro
existia nos teus dedos

Queria tanto que um olhar bastasse
e não fosse no fundo preciso
dizer nada...

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