sexta-feira, 18 de junho de 2010

Pena de morrer

Do discurso de aceitação do Prémio Nobel




(…) Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver. (…)


José Saramago

1 comentário:

Marcos Lima disse...

Vou confessar que nem era fã do autor, talvez por não ter lido nenhuma de suas obras ou por nunca ter me interessado por elas. O fato é que não deve-se deixar de ressaltar sua grande importância para a literatura portuguesa.

Saramago teve a coragem de fazer o que muitos autores apenas pensaram: lutar contra o senso comum e atingir, assim, um reconhecimento por isso!

Fará muita falta!

Beijos
http://senhor-do-tempo.blogspot.com