sexta-feira, 20 de junho de 2008

Obrigada pai pela prenda...ainda não perdi a esperança de um dia a poder fazer eu...e chegar ao Namibe...

Quis a sorte que eu, que nem carta de condução tenho, me juntasse ao 3.º Raid Todo Terreno Kwanza Sul. É assim que durante 12 dias, integrada numa coluna de 17 viaturas, com mais 45 companheiros portugueses, angolanos e luso-angolanos, faço 3250 km por montes e vales, matas e florestas, desertos e praias, cidades e vilas, rios e lagoas. Vejo, uma e outra vez, nascer o sol para morrer depois, em poentes excessivos. Vou por caminhos vários, de asfalto e picada, de pedra solta e areia, atravesso rios, saltando pelos seus leitos secos ou cortando as sua águas, passo dunas e bordejo precipícios. A minha cabeça é um caleidoscópio, o horizonte forma um círculo perfeito, ouço todos os silêncios, distingo todas as cores. E dou graças a Deus por ter nascido.O que escrevo hoje é apenas um breve apontamento impressionista sobre a aventura que me leva através das Províncias de Luanda, Bengo, Kwanza Sul, Benguela, Namibe, Huíla, Huambo e Kwanza Norte. O todo-o-terreno tem a vantagem de quase nada lhe ser inacessível. Mas este tipo de raide tem, também, uma cultura própria que se percebe na disciplina, na entre-ajuda, no espírito de equipa, as viaturas ligadas constantemente por rádio, para avisar dos riscos imprevistos, mas também para contar histórias, anedotas, trocar memórias.É neste ambiente que vou olhando, bebendo a paisagem e anotando curiosidades como os trabalhadores chineses com o seu chapéu tradicional, asfaltando as estradas e parecendo nem saber onde se encontram. A pequena quitanda com o nome de Sport, Lisboa e Benfica, ou o barbeiro que se chama "entras feio, sais bonito", aquela palhota num pequeno quimbo que ostenta uma tabuleta com letras vermelhas onde se lê "gabinete de tratamento de doenças crónicas". Graças à força das viaturas e à perícia dos pilotos podemos afoitar-nos pelos caminhos do Dombe Grande e da serra da Neve num percurso entre Benguela e Namibe que acaba por durar 15 horas com uma curta paragem no deserto para comer umas sanduíches e - que luxo! - fazer café e saboreá-lo no meio daquela impressionante paisagem. Grandes cordilheiras com cactos gigantes, capim seco e a serra da Neve assim chamada pela abundância de quartzo que a cobre como geada. É um percurso com muita pedra, descidas abruptas, de solidão e silêncio, até que, já ao cair da tarde, vemos os primeiros animais, um grande número de babuínos negros que aparecem no topo dos montes e começam a sua descida em busca de água. A passarada também parece acordar de uma longa sesta e aquele mundo, que parecia fantasma, anima-se subitamente.E que dizer da baía dos Tigres, do percurso das dunas altas, desse mundo intocado e de total harmonia, habitat de focas, golfinhos, tartarugas gigantes, pelicanos e milhares de patos negros e mexilhões gigantes? Ou da imagem impressiva das crianças de uma pequena vila, sentadas nas suas cadeirinhas de plástico e segurando o seu precioso caderno e lápis, aprendendo debaixo de duas frondosas árvores? Ou do pequeno quimbo, antes do deserto, onde pastores mucubalis conversaram connosco em português? Como esquecer a emoção sentida, após tantas horas de deserto, ao chegar à pequena vila piscatória de Lucira? Ou o surpreendente jantar na foz do Cunene com mexilhões gigantes acabados de apanhar e uma fogueira acesa para afugentar jacarés e chacais? Ou o não menos surpreendente almoço no resort do Parque Nacional do Iona, numa sala dentro da rocha da própria montanha, com uma inesquecível garoupa grelhada e bom vinho a acompanhar? Ou o conforto inesperado do Grande Hotel da Huíla, todo restaurado, e a sua pastelaria portuguesa? Ou a elegância imutável do Hotel Terminus e da restinga do Lobito? Ou o primeiro mergulho no Atlântico Sul na praia da Baía Grande? Ou a generosa recepção no Namibe com música e teatro do melhor? Ou a subida dos "lacetes" da serra da Leba? Perante o que vejo construído, destruído ou em reconstrução - cidades, pontes, estradas e caminho-de-ferro - e o que ouço, sempre em português, não posso deixar de pensar no grande país que eles são e no grande país que nós fomos...


Maria José Nogueira Pinto

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