quinta-feira, 3 de abril de 2008

Contos politicamente correctos...

A FORMIGA E A CIGARRA


“No mundo dos Gregos antigos, a agricultura estava ainda numa fase de rudimentaridade avançada. Os ecossistemas agrícolas eram diversos e saudáveis, com as plantas silvestres indígenas e as prósperas colónias de insectos a partilhar o espaço com as culturas domesticadas. Daqui resultava que as searas e as vinhas estavam cheias de insectos vigorosos, afoitos e bem falantes. De todos o mais laborioso era sem dúvida a formiga. Todo o santo Verão labutava à torreira do sol, acarretando cereais e sementes para a sua despensa, na antevisão de um Inverno prolongado.No mesmo campo vivia uma cigarra cuja vida era muito livre de cuidados, dado que há muito tinha rejeitado o conceito burguês, ganancioso, do “ganhar a vida”. Para ela, a existência ideal era a que consistia em usufruir da natureza em moldes duma exploração não estruturada e folgazona, de que muitas vezes tirava o melhor partido, passando a maior parte do dia a dormir. Outras vezes cantava alegremente nas searas, chuRRIIP, chuRRIIP, assim mantendo a rica tradição oral das cigarras.Esta atitude alternativa não passava despercebida à formiga, entregue à sua azáfama ao calor e ao pó. Quando via a cigarra a gozar a vida, sentia um frémito de raiva em todos os orifícios do seu exosqueleto.“Olha-me para aquela cigarra”, murmurava a formiga de si para consigo. “Passa o dia sentada sobre o abdome, a cantar as suas cantigas de cana rachada. Quando será que ela vai dar algum sinal de responsabilidade? Chamar-lhe sanguessuga seria um insulto a todos os vermes segmentados e trabalhadores deste país. Esta limita-se a vigiar-me, à espera da oportunidade de me assaltar e me roubar tudo o que eu juntei com tanto trabalhinho. É o que fazem os da laia dela.”Por seu turno, a cigarra estava a olhar para a formiga, mas numa linha de pensamento completamente diferente. “Olha-me para aquela formiga”, pensava ela, “o que ela trabalha para juntar uma pobre reserva de cereais. E afinal para quê? Se ao menos tentasse entrar numa um pouco mais Zen, iria perceber que para a pedra tanto faz um grão como mil e que a chuva nunca tem de se preocupar com a sua caligrafia.”E assim se passou o Verão. A formiga, uma personalidade de tipo A sem tirar nem pôr, passou os seus dias num frenesim de trabalho, mas a sua actividade egoísta e socialmente irresponsável fez-se pagar. A formiga contraiu uma úlcera péptica, apanhou uns valentes sustos por causa dumas dores no tórax e perdeu quase todos os pêlos que tinha no alto da cabeça. Em meados de Setembro, o marido saiu de casa para comprar sais de frutos e nunca mais lhe apareceu. A formiga deixou-se de tal maneira obcecar pela sua reserva de cereais que foi ao ponto de instalar um sofisticado sistema de segurança no interior e área circundante do seu formigueiro, com câmaras de vídeo e sensores de movimento capazes de capturar qualquer presumível ladrão.Entre sestas, a cigarra observava tudo isto com desprendida curiosidade. Ao mesmo tempo estudava yoga, esquadrinhava a zona em busca da chávena ideal para fazer cappuccino, aprendeu a tocar viola sem mestre (a bem dizer, só uma canção, que ela própria escreveu, em estilo de blues, com três notas) e principalmente mandriava. E procurava que o seu estilo de vida centrado no lazer se adequasse ao fluir das estações. Quando o tempo começava a ficar mais desagradável, começava ela a fazer planos de ir fazer surf para a Austrália. Mas, naquele ano, o Inverno chegou muito cedo (ou foi o Verão que se foi embora muito depressa, dependendo da orientação climática de cada um) e os campos rapidamente deixaram de produzir. A pobre cigarra achou-se vítima dos caprichos das alterações meteorológicas. Andou saltitando pelos campos em busca de sustento de qualquer espécie. Ter-se-ia contentado com uma migalha, uma casquita, uma semente ressequida, mas nada encontrou que fosse comestível.Até que vislumbrou a formiga, que, com toda a energia, arrastava atrás de si uma bela palha de trigo. A fome da cigarra levou a melhor sobre o seu orgulho e ela avançou, com a ideia de pedir à formiga que com ela repartisse um bocadinho do seu imenso pecúlio alimentar. Só que a formiga, mal avistou a cigarra, desatou a gritar.“AAAHHHHHH!!! O que é que tu queres? Que estás aqui a fazer? Vinhas roubar a minha palha, não vinhas? Eu sei que tu andavas à espera do dia em que me havias de roubar tudo o que tenho! Eu conheço bem a tua laia!”A cigarra bem tentou interrompê-la, mas a formiga prosseguiu: “Não me digas nada! Não me venhas com falinhas mansas e promessas vãs! Para ter o que tenho fartei-me de trabalhar, coisa que não está na moda em certos círculos.”A cigarra respondeu delicadamente: “Mas olha, Irmã Formiga, com certeza que tens mais do que alguma vez serás capaz de comer.”“Isso é problema meu”, disse a formiga, “e, que eu saiba, não vivemos em nenhuma república socialista, daquelas que até o sangue nos chupam...por enquantopelo menos ! Vê lá se tomas juízo, cigarra! O único sítio onde o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário.”“Sabes, é que eu estava com ideias de ir para a Austrália, mas o tempo a modos que mudou e tudo o que era comida desapareceu...”“É assim que funciona um mercado livre, minha. Vê se aprendes a lição.”“Vais-me desculpar, Irmã Formiga, mas sinto que é minha obrigação dizer-te que precisas de trabalhar o teu karma. A aura que estás a projectar está cheia de energia negativa, que facilmente podes transformar em positiva, bastando para que tanto...”“Olha lá, já que estás para aí a armar em mística comigo, diz-me uma coisa: Qual é som duma cigarra a morrer de fome? Ah, ah, ah!”A discussão inconclusiva da cigarra e da formiga foi interrompida pelo som dum pigarro. Ambas se viraram e deram de caras com um louva maior do que elas duas juntas! (O louva foi em tempos louva-a-deus, mas, por sentença judicial, teve de deixar de o ser. Mas manteve sempre um lado profundamente espiritual.) A formiga e a cigarra assustaram-se, não tanto pelo tamanho superior à média proporcional do louva, mas principalmente pela sua aparência, que não era para brincadeiras. Trazia um fato cinzento de poliester e sapatos mocassin castanhos com berloques e nas patas dianteiras via-se uma pasta, um saco de papel pardo com o almoço e uma calculadora.“Quem é a formiga?”, perguntou o louva, embora conhecesse muitíssimo bem quem procurava. “Formiga, venho fazer-te uma auditoria.”Com estas seis palavras de mau prenúncio, muda o curso da nossa história. Vamos evitar os pormenores sobre a auditoria, as acusações contestadas, o processo judicial e respectivos recursos e a falhada tentativa de fuga da formiga para as ilhas Cayman, bastando que se diga que o produto do açambarcamento feito pelo ganancioso insecto foi confiscado e destinado a fins comunitários mais responsáveis, na sequência da integração da formiga no sistema correccional. Enquanto isto, a cigarra organizava um programa para os jovens insectos da região desejosos de intercâmbio cultural com países dotados de climas mais quentes. Graças a uma redistribuição dos recursos do governo ( e aos bens da formiga), a cigarra vem desde então até hoje guiando expedições de surfistas.”


In CONTOS DE FADAS POLITICAMENTE CORRECTOS – Contos de sempre nos tempos modernos


De James Finn Garner

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